Leonard Peacock e minha "batalha diária"

março 09, 2017

Leonard Peacock e minha batalha diária
Foto por John-Mark Smith
Escrevi esse texto em março de 2016. A despeito do tempo, sinto que ele é tão atual e eu já tive essa reflexão tantas outras vezes que eu senti que deveria postar. Editei alguns trechos e tentei atualizar um pouco com o resultado desse pensamento, que vem me acompanhando desde o ano passado. Ainda que as palavras sejam antigas, o sentido permanece atual. Posso dizer, com facilidade, que foi um insight que mudou minha vida.

Quando li Perdão, Leonard Peacock (um livro que sempre deixo bem claro que me marcou muito), fiquei bastante tocada com um trecho em que Leonard e seu professor conversam sobre uma batalha diária, a batalha que temos que lutar todos os dias para não sermos destruídos pelo mundo. O diálogo é o seguinte:

— Minha vida vai melhorar? Você acredita mesmo nisso? — pergunto, embora eu saiba o que ele vai dizer, o que a maioria dos adultos sente que precisa ser dito quando lhe fazem esta pergunta, embora a enorme quantidade de evidências e experiências de vida sugiram que a vida das pessoas fica cada vez pior até elas morrerem. A maioria dos adultos simplesmente não é feliz, isto é um fato.
Mas eu sei que soará menos mentiroso vindo de Herr Silverman.
— É possível. Se você estiver disposto a fazer com que isso aconteça.
— Acontecer o quê?
— Não deixar o mundo destruí-lo. Essa é uma batalha diária.

Fora de contexto, talvez não seja tão marcante assim. Mas eu vou dar um spoiler: Leonard está com a arma velha de seu avô nas mãos, prestes a se matar, e a única pessoa que parece se importar com ele — seu professor — está tentando impedi-lo de fazer isso. Esse trecho me marcou demais, principalmente porque eu não tinha pensado na vida como "uma batalha diária". A minha visão era muito parecida com a do Leonard: a vida fica cada vez pior até todo mundo morrer. Esse tipo de pensamento não te dá muita força pra levantar de manhã e ir viver. Quando li isso, muitas coisas se tornaram claras para mim.

Vez ou outra eu me sinto tão desanimada, tão sem energia, que minha vontade é de ficar deitada o dia todo e só deixar o tempo passar. Escrevi sobre isso uma vez, "da minha falta de alma". Na verdade, já escrevi sobre isso tantas vezes que eu parei de postar, por se tornar um assunto tão repetitivo que nem eu mesma queria continuar falando sobre ele. De fato, quando esse sentimento vem, eu apenas digo "olá vazio" e vou fazer alguma coisa, só esperando passar. Eu aprendi a lidar, e em parte, devo a reflexão que esse livro me trouxe.

Quando eu li esse diálogo, ano passado, eu compreendi, não meus "vazios" ou porque eles acontecem, mas compreendi que estava perdendo. Perdendo a batalha de todos os dias. Eu também aprendi com a literatura que tudo o que as pessoas querem é "ficar bem". Acredite em mim, já li essas mesmas palavras em vários livros. E eu também queria ficar bem, logo, quando esse vazio aparecia, além do sentimento ruim que era próprio dele, eu também me sentia mal por não estar bem. Eu me sentia mal por todo mundo parecer funcionar normalmente, e eu, ocasionalmente, precisar fazer um esforço imenso só pra levantar da cama. Me sentia mal por tentar falar sobre isso e as pessoas compreenderem como drama, ou, como no post que falei da falta de alma, entrarem numa competição de quem se sentia pior. Tudo isso se somava, e como resultado, eu me entregava a esse sentimento de desânimo, antes mesmo de começar a lutar.

As palavras de Herr Silverman, ainda que sejam de um personagem fictício, me ajudaram a compreender que "ficar bem" não era algo que surgiria na minha vida como passe de mágica, e que alguma coisa ia acontecer, e então eu seria uma pessoa mudada, realizada e completa. Entendi que eu não me transformaria, de uma hora pra outra, em alguém que não sofre de períodos depressivos e que tem uma armadura pra se proteger do mundo. Não, nada disso. Ainda que um dia eu seja essa pessoa, eu precisaria entrar numa longa jornada, e foi o que ficou claro para mim durante a leitura.

Eu entendi que todo dia, principalmente nos dias em que eu não estivesse bem, eu precisaria levantar e travar uma batalha, não com um dragão de sete cabeças, com um chefe malvado ou o trânsito engarrafado, mas comigo mesma, comigo e minha vontade (ou falta dela) de não fazer nada, de apenas ficar deitada, de deixar a vida passar. Precisaria lutar contra meus medos, de falar em público, de me expor, de me aproximar das pessoas. Eu teria fazer um esforço imenso pra tirar o pijama, ir no mercado, ler um livro, começar uma conversa, pegar ônibus, viver minha vida... Eu não seria "uma pessoa que faz coisas naturalmente", mas seria "a pessoa que precisa se esforçar pra fazer tudo naturalmente", e se eu deixasse de fazer as coisas por um dia, e outro, e outro, eu perderia minha "batalha diária" e deixaria o mundo — ou eu mesma — me destruir. 

Parece desesperador a princípio. Eu entrei em pânico quando pensei em fazer todas as coisas, todos os dias, até o fim da vida. Me senti como o Sísifo, do mito: condenada a carregar uma pedra morro acima, só pra ver ela rolar morro abaixo quando eu terminasse. Com uma diferença: a pedra era eu mesma. Imagine enfrentar todos os dias algo que está dentro de você. Um inimigo que não é um inimigo de fato, mas você mesmo. Quase fiquei sem esperanças, num primeiro momento. Mas aí eu percebi que não era tão ruim assim. Quando a pedra desce, Sísifo tem um descanso; o mesmo acontece comigo, quando estou bem, não preciso me esforçar tanto, as coisas acontecem naturalmente. E quando eu não estou bem, só depende de mim. Vejo as minhas tarefas do dia e vou fazendo uma coisa de cada vez, mesmo que contra a minha vontade, sem pensar muito, sem me cobrar muito, um passo de cada vez. Tem funcionado. Sinto que venci a batalha, naquele dia, e tenho esperança de me sentir melhor, no outro. Se não me sentir, é mais um dia a ser enfrentado, um passo de cada vez.

Cada dia é uma batalha, sim. Mas cada dia é uma vitória também. Pessoas "normais" nunca vão entender o sentimento de satisfação e realização que vem ao se fazer coisas extremamente simples, como visitar um parque, terminar a leitura de um livro, tomar um sorvete... O sentimento de gratidão que vem com cada uma dessas pequenas conquistas. Não é só sobre vencer o vazio, o medo e as inseguranças, ou vencer a zona de conforto, é sobre estar viva, e disposta a viver. Eu estou disposta, e essa é a minha batalha diária, qual é a sua?


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12 comentários

  1. Marina, que texto incrível.
    Faz um tempinho que não escreve um texto de reflexão no meu blog, mas fiquei muito feliz de acompanhar a sua reflexão que me fez pensar bastante. Ainda não conhecia o livro que você citou, mas confesso que fiquei bem interessado em lê-lo. Foi muito bom ler o seu texto, pois a alguns dias não estava me sentido muito bem e bem desanimado com tudo, mas sua publicação fez eu pensar um pouco. Acho que vale a pena doar um pouco das nossas forças em prol de nós mesmo de vez em quando, embora eu tenha um pouco de dificuldade em fazer isso. Adorei tudo, cada trecho de reflexão. Muito obrigado.
    Abraço!

    meuniversolb.wixsite.com/meuniverso

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    1. Leandro, a gente tem essa cultura de achar que priorizar nossa saúde mental é egoísmo. Não é!! Se você está doente fisicamente, ou se sentindo fraco, cansado, ninguém vê problema em você procurar um médico, mas isso não acontece com nossa saúde mental. Grande parte das cobranças vem até de nós mesmos. Nos sentimos pessoas horríveis por pensar nos "nossos problemas", sendo que existem tantas outras pessoas passando por coisa muito "pior". Em primeiro lugar, não existe isso de "pior", cada um sabe da dor que sente, e em segundo lugar, a gente só pode ajudar os outros quando ajudamos a nós mesmos. Você precisa gastar um pouco de energia com você mesmo pra levantar e gastar com outras pessoas/coisas. Trabalhe essa dificuldade e gaste seu tempo por você, você só tem a ganhar com isso ;)

      Sobre o livro... ele é muito bom! Já falei dele várias vezes aqui no blog. É bem curtinho e vale a pena ler. Fico muito feliz que minha reflexão fez você pensar um pouco, eu que agradeço pelo feedback, já fez o texto valer a pena ♥

      Abraço!

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  2. Também sinto que sinto carregar uma pedra, e que ela sou eu :c
    E também já cansei de falar sobre o mesmo assunto sempre em meu blog, mas e lá e aqui - no seu caso, que os sentimentos são descarregados. Se não for no blog, onde será?

    Confesso que terminar um livro, passear num parque e tomar sorvete são boas distrações, mas sinto medo de não poder fazer essas coisas às 3h da manhã, quando a "escuridão" aparece :c

    bruna-morgan.blogspot.com

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    1. Eu acabo descarregando aqui mesmo, nem sempre tem gente disposta a ouvir, e nem sempre eu tô disposta a falar. Aqui pelo menos eu tenho liberdade de ser como eu sou, sem me preocupar. Acho que você também se sente assim com seu blog, pelo que eu percebo.

      O que quer dizer com "quando a 'escuridão' aparece"? :(

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    2. uma tristeza que sempre me assola durante a madrugada :c

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    3. Entendi agora! Conheço algumas pessoas que passam por isso, eu mesma já tive fases onde bastava ficar de madrugada que eu começava a chorar, às vezes até sem motivo. Eu ando dormindo cedo, então não está acontecendo muito, mas é ruim demais ter que passar por isso :/

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  3. Acho que isso ocorre com tempo, tem dias que eu não quero sair da cama, como se ela fosse meu 'ponto de paz', tem dias que eu quero jogr tudo para ar e deixar de ser quem eu sou, sabe eu quero mudar todos os dias, não quero ser a mesma, mas eu deixo tudo para depois,eu vou deixando de lado que ser igual todos os dias e que deixar meus sentimentos transparecer e não ser forte,e perdo a luta diária.

    Mas depois de ler esse texto eu percebi que só em pensar de ser a mesma e tentar me convencer é uma perda, é uma derrota, as vezes eu me sinto uma derrotada, uma sem sentido, uma pessoa que se preocupa de mais com as outras, e acaba no final do livro sozinha.

    Eu tenho medo, na verdade eu estou morta de medo, se alguem descobrir que eu sou fraca, que os sentimentos me assombram, que eu não posso fazer certas coisas não porque a mamae nao deixa, mas sim pelo medo de errar, minha luta diaria, é vencer eu mesma

    http://dosedestrelas.blogspot.com.br/

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    1. Oi Samanta! Entendo o que você quis dizer sobre a vontade de mudar e jogar tudo pro alto. Não foi sobre isso que falei no post, mas já me senti assim. Apesar de não parecer, esse sentimento pode ser bom pra você. Quando você quer jogar tudo pro alto e mudar, significa que algo está errado. Alguma coisa não está indo do jeito que você queria na sua vida, refletir sobre isso e identificar o que é, é meio caminho andado pra mudança. Tente identificar o que te faz sentir assim e nunca tenha receio de procurar ajuda.

      Sobre o medo, faz parte da condição de ser humano. Todo mundo se sente ou já se sentiu fraco, desemparado e com medo. Na verdade, pra mim, ter medo é sinal de bom senso. Quem compreender isso não vai julgar você.

      Se cuida, viu? <3

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  4. Oii Marina, que texto ein! Uma das coisas que me encantam são esses texto e pessoas capazes e com dom de escrever, também gosto de pensar que fases ruins servem de inspiração para bons escritos. Todo sucesso pra ti.

    Beijinhos de luz
    Preguiça Literária

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    1. Oi Claudia!

      Quem dera se eu tivesse algum dom! Tudo que eu faço aqui é botar sentimentos no papel, não consigo encontrar uma outra forma de "sentir" que não essa.

      Obrigada pela visita!

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  5. Esse livro também mexeu muito comigo.
    Lembro que no dia que eu li, estava com problemas no trabalho e comecei a folhear em uma fila (poupa tempo aqui em sp) e quando vi já estava terminando a história.

    Fiquei um bom tempo com o livro e o personagem na cabeça...

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    1. Eu também fiquei, até hoje tem cenas que eu me lembro com muitos detalhes, como se eu tivesse realmente visto aquilo acontecer. Livro bom é assim <3

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